sábado, 20 de novembro de 2010

Ceres Marylise



Memória Genética
(Uma história verídica)

De portas, janelas, varandas enormes,
um tal casarão, de cômodos tantos,
propõe-me um pungente e triste encontro
com o que fui um dia, também ser humano,
mas traste inútil, nos tempos de antanho.

Num quarto imenso, lúgubre, escuro,
do fundo da casa, perto dos currais,
estão sepultados os mortos no tronco,
os negros escravos, pobres, indefesos,
tão brutalizados quanto os animais.

Próximo à cozinha, meio apodrecido,
ainda resiste um tronco com argolas:
grosso pelourinho, cravado no chão
de terra batida do que foi senzala,
guarida de escravos, nos idos de outrora.

Por longos instantes, ali eu reflito
e escuto os lamentos dos meus ancestrais:
vieram de longe arrastando negros,
arrastando índios, arrastando brancos;
genes milenares - trago os seus sinais.

No silêncio do tempo, com voz alquebrada,
ressoa mais forte, aquela mais triste...
delata a presença de todo um passado
de dor, inclemência, cruel, desumano
- do negro que sofre e ainda resiste.

Quantas espadas perfuraram os seus peitos?
Quantos braseiros queimaram seus corpos sãos?
Quantos chicotes rasgaram corpos inteiros?
Quanto sangue jorrou forte e indefeso,
enriquecendo aos senhores e às nações?

Inconformada, infeliz, rio como louca...
e parece que ouço o zunir dos chicotes,
o arrastar de correntes e infinitas dores,
presentes na alma, na carne e no sangue
- memória genética: escrava e senhora!

© Ceres Marylise

Nota da autora: O casarão colonial que se vê no filme ABRIL DESPEDAÇADO, com o ator Rodrigo Santoro, fez parte de minhas adolescência e juventude. A fazenda Santa Bárbara, município de Caetité-BA, foi do Barão de Caetité e com sucessivas posses, chegou a ser parte de minha herança. Hoje, ela é tombada pelo Patrimônio Histórico.

No Dia da Consciência Negra, o Scenarium presta uma homenagem àqueles que, mesmo espoliados, ajudaram a construir o nosso País. Os negros, trazidos da África como escravos, contribuíram na formação da cultura nacional. Além de ser um dia em homenagem à cultura afro-brasileira, é um dia de reflexão, para que construamos uma sociedade mais justa, com oportunidades e direitos iguais a todos.
Agradeço à Poeta Ceres Marylise e à artista e formatadora Denise Moura por autorizarem a publicação de suas criações.

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