quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Anayde Beiriz



“A altivez é o traço predominante do meu caráter, porém minha mágoa mais dolorosa é saber-me impotente para vencer meu destino.”

Poetisa e professora, Anayde Beiriz, escandalizou a sociedade conservadora paraibana na década de 30 com seu estilo vanguardista. Participava dos movimentos intelectuais e se declarava a favor da liberdade e da autonomia feminina. Posteriormente, a ela coube a metáfora de Peregrina da Liberdade.

“Eu possuo essa impetuosidade despreocupada e desinteressada dessa raça mestiça de que descende minha família paterna, também possuo, num grau tão alto como ninguém talvez possui, a altivez e o orgulho dessa raça de sertanejos a que pertence a minha mãe [...].”

Além de ser uma mulher emancipada, Anayde perturbava os moralistas com o uso de roupas decotadas, maquiagem e corte de cabelo “à la garçonne”. Defendia a participação das mulheres na política, numa época em que elas ainda não podiam votar.

“Elevemos a mulher ao eleitorado (...). Em vez de a conservarmos nesta menoridade convidemo-la a colaborar com o homem na oficina política.” (Anayde, apud Joffily, 1840:43)

Passou a escrever em pequenos jornais e revistas e se destacou como a primeira mulher na imprensa alternativa paraibana identificada com o movimento modernista. Lírica, com uma imaginação criadora marcadamente evadindo-se rumo ao sonho, ela escreveu:

“Eu escrevo para criar um mundo no qual possa viver. Procuro criar um mundo como se cria um determinado clima, uma atmosfera onde eu pudesse respirar.
Devemos conquistar nossa força e edificar nossos valores com base no desenvolvimento pessoal e na descoberta de nós mesmos. Contra as desigualdades, as injustiças [...].”


E acrescenta, voluntariamente exilada na produção literária, não apenas em texto acabado, estruturado definitivamente, sobretudo gerador de sentidos:

“Se você não respira quando escreve, não grita, não canta, então sua literatura será limitada. Quando não escrevo, meu universo se reduz, sinto-me numa prisão. Perco minha chama, minhas cores. Escrever para mim é uma necessidade.”

Anayde não era afeita às convenções no que tange a relacionamentos amorosos e foi um destes relacionamentos, com João Dantas, que a fez entrar para a história. Segundo Marcus Aranha, em seu livro “Panthera de Olhos Dormentes”, o grande amor da poetisa foi Heriberto Paiva, conclusão do escritor, após pesquisa em material fornecido pela família de Anayde.

Em meados de 1924 conheceu o paraibano Heriberto Paiva, a quem chamava de Hery, um ano mais novo que ela, filho de abastado comerciante, estudante de medicina no Rio de Janeiro. O namoro foi rejeitado por parte da família dele, tornando a paixão proibida em uma intensa paixão avassaladora, onde os enamorados trocavam cartas repletas de uma verdade doce e envolvente, revelando um misto de romantismo e ousadia. O romance findou em 30 de agosto de 1926.

“(...) O amor que não se sente capaz de um sacrifício não é amor; será, quando muito, desejo grosseiro, expressão bestial dos instintos, incontinência desvairada dos sentidos, que morre com o objetivar-te, sem lograr atingir aquela altura onde a vida se torna um enlevo, um doce arrebatamento, a transfiguração estética da realidade... E eu não quero amar, não quero ser amada assim... Porque quando tudo estivesse findo, quando o desejo morresse, em nós só ficaria o tédio; nem a saudade faria reviver em nossos corações a lembrança dos dias findos, dos dias de volúpia de gozo efêmero, que na nossa febre de amor sensual tínhamos sonhado eternos.
Mas não me julgues por isto diferente das outras mulheres; há, em todas nós, o mesmo instinto, a mesma animalidade primitiva, desenfreada, numas, pela grosseria e desregramento dos apetites; contida, nobremente, em outras, pelas forças vitoriosas da inteligência, da vontade, superiormente dirigida pela delicadeza inata dos sentimentos ou pelo poder selético e dignificador da cultura.
Não amamos num homem apenas a plástica ou o espírito: amamos o todo. Sim, meu Hery, nós, as mulheres, não temos meio termo no amor; não amamos as linhas, as formas, o espírito ou essa alguma coisa de indefinível que arrasta vocês, homens, para um ente cuja posse é para vocês um sonho ou raia às lides do impossível. Não, meu Hery, não é assim que as mulheres amam. Amam na plenitude do ser e nesse sentimento concentram, por vezes, todas as forças da sua individualidade física ou moral.
É pois assim que eu te amo, querido; e porque te amo, sinto-me capaz de esperar e de pedir-te que sejas paciente. O tempo passa lento, mas passa...
...E porque ele passa, e porque a noite já vai alta, é-me preciso terminar.
Adeus. Beija-te longamente, Anayde”

Em 1928, Anayde iniciou um relacionamento amoroso com João Dantas, político local ligado ao Partido Republicano Paulista, que fazia oposição ao então Governador do Estado da Paraíba, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque. Depois do violento confronto político que foi chamado República de Princesa, João Dantas acabou se refugiando no Recife, mantendo o relacionamento com Anayde à distância, através de cartas.

João Pessoa, acuado pelos adversários, reagiu e mandou a polícia revistar as casas dos revoltosos e suspeitos, em busca de armas que pudessem ser utilizadas em uma revolta armada. Um desses locais foi o escritório de João Dantas na cidade da Paraíba, invadido em 10 de julho de 1930. Embora não tenham sido encontradas armas, os policiais depredaram as instalações e arrombam o cofre, onde foi encontrada a correspondência de Dantas, inclusive cartas e poemas de amor recebidos de Anayde.

Visando atingir a honra de Dantas, o conteúdo de toda a correspondência furtada foi publicado nos órgãos de imprensa estadual ligados à situação.
Em 26 desse mesmo mês, João Dantas, acompanhado de um cunhado, Augusto Caldas, entra na Confeitaria Glória, no Recife, e dispara contra o peito de João Pessoa, matando-o. Lavava, com esse gesto, a sua honra ofendida.

Criticada publicamente por razões morais e políticas, Anayde sentiu-se acuada após o assassinato de João Pessoa. Desse modo, abandonou sua residência na Paraíba e foi morar em um abrigo no Recife, onde passou a visitar João Dantas, detido em flagrante e recolhido à Casa de Detenção naquela cidade.

Dantas foi encontrado morto em sua cela, degolado, em 3 de outubro do mesmo ano, no início da Revolução de 1930. Embora, à época, tenha sido declarado suicídio como causa mortis, as circunstâncias ainda permanecem obscuras.

Anayde veio a falecer dias depois, aos 25 anos de idade, supostamente também por suicídio, provocado por envenenamento, quando sob os cuidados de freiras. O seu corpo foi sepultado como indigente no Cemitério de Santo Amaro e sua memória foi renegada durante anos pelos paraibanos. Sua imagem só se tornou emblemática quando foi eleita como uma das personagens míticas da história do Brasil, pelo movimento feminista.

“Nasci
Nasceu
Cresceu
Namorou
Noivou
Casou
Noite nupcial
As telhas viram tudo
Se as moças fossem telhas não se casariam”

A memória de Anayde foi resgatada principalmente após a publicação do livro de José Jofilly, intitulado “Anayde – Paixão e Morte na Revolução de 30”. Aproveitando o centenário de nascimento da poetisa em 18 de fevereiro de 2005, o médico e escritor Marcus Aranha lançou o livro “Anayde Beiriz – Panthera dos Olhos Dormentes”, onde ele se propôs a desfazer a detratação mítica feita com a poetisa paraibana: “Sem que tenha cometido quaisquer crimes, sem que sobre ela pesasse nenhuma acusação, Anayde Beiriz foi condenada a primeira vez como prostituta de João Dantas pela Aliança Liberal em 1930, tendo seu nome execrado e expurgado da consciência de quase toda uma geração. Em 1983, por obra e graça de Tizuka Yamasaki (diretora do filme "Parahyba, mulher macho"), Anayde foi condenada mais uma vez, também como libertina e prostituta debochada".

Em seu diário, Anayde escreveu:

“... Os meus amigos que escrevem nos jornais que também escrevo, chamam-me PHANTERA DOS OLHOS DORMENTES... Sabes por que? Porque dizem que nos meus contos sempre ponho uma mancha de sangue e porque gosto de tudo o que é vermelho...
Crêem eles que sou trágica, que gosto desse amor que queima, dessa paixão que devora, dessa febre amorosa que mata...”


Heriberto passou a chamá-la também de “pantera”, desde que ela lhe escreveu:

“A pantera é bem humana, não é verdade, amor? Mansa, dócil, amorosa, em se tratando de ti; mas, para os outros, eu queria poder esmagá-los, a todos… Contudo, gostei desse título de fera que eles me deram; escrevi um conto com esse nome e enviei-o para a ‘Tribuna do Pará’. Creio que brevemente será publicado”.

“De uma carta que te escrevi e não te enviei
(as partes em colchetes estão danificadas no material origem)

Não Eu não hei de chorar [...]
Tu me conheces bem pouco. Por isto é que me falas em lágrimas.
Só os desesperados é que choram e eu continuo a esperar [...]
Pouco se me dá saber da tua nova paixão [...]
É tão vulgar a existência de outra mulher no destino do homem que a gente deseja [...]
E, bem sabes, no amor, como em tudo, apenas me seduz a originalidade [...]
A razão por que gostei de ti?
Porque pensei que tu eras louco [...]
Tive sempre a extravagância de achar deliciosos os loucos que julgam ter juízo [...]
Desiludiste-me afina!
[...] E é tão desinteressante um homem ajuizado que finge de louco [...]
Dizes que me procurarás esquecer. Ingênuo!
Desafio-te a que o consigas [...]
As marcas das minhas carícias não foram feitas para desaparecer facilmente [...]
Mil outros lábios que se incrustarem na tua boca não arrancarão de lá a lembrança da minha [...]
Mas, se ainda assim, o conseguires, a tua vitória não será duradoura.
Não há vantagem em esquecermos hoje o que temos de lembrar amanhã [...]
Apraz-te que eu guarde os meus beijos [...]
Guarda-los-ei, por enquanto.
Advirto-te, porém, que os beijos são como os vinhos raros, quanto mais velhos, Melhor embriagam [...]
Enganas-te se pensas que entre nós dois tudo está terminado [...]
Se agora é que começou [...]
A nossa história, hoje, está bem mais interessante [...]
E tu fizeste para mim, muito mais desejado [...]
Porque tenho que te arrancar do domínio de outra mulher [...]
No entanto, eu já não te amo [...]
Admiro os homens fortes e tu és um covarde: Tens medo do meu amor. Receias o delírio febril do meu desejo, a exaltação diabólica do meu sensualismo, a impetuosidade selvagem da minha volúpia [...]
Sonhar um afeto simples, monótono, banal [...] Um afeto que toda mulher pode dar [...]
Tu, um artista!
Fazes bem em procurá-lo distante de mim
O meu amor é bem diferente: é impulsivo, torturante, estranho, infernal [...]
Ouve, contudo, o que te digo: hás de experimentá-lo ainda uma vez [...]
Então veremos quem de nós dois chorará [...]

“Muitas atitudes minhas, incompreensíveis aos olhos desses fariseus por aí, vinham do angustioso recalque dos ímpetos de minha alma e da obrigação em que estava de dizer pela metade, aquilo que eu poderia dizer totalmente.”
(Lima Barreto, conforme citação de Anayde Beiriz)

Fontes:
Wikipédia
Memorial Pernambuco
Revista O Viés
ClicRN

Retrato de Anayde, óleo sobre tela por Priscila Holanda, Prisca.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Álvares de Azevedo



Minha Desgraça

Minha desgraça não é ser poeta,
Nem na terra de amor não ter um eco...
E, meu anjo de Deus, o meu planeta
Tratar-me como trata-se um boneco...

Não é andar de cotovelos rotos,
Ter duro como pedra o travesseiro...
Eu sei... O mundo é um lodaçal perdido
Cujo sol (quem mo dera) é o dinheiro...

Minha desgraça, ó cândida donzela,
O que faz que meu peito assim blasfema,
É ter por escrever todo um poema
E não ter um vintém para uma vela.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Ivan Martins



Solidão contente
O que as mulheres fazem quando estão com elas mesmas

Ontem eu levei uma bronca da minha prima. Como leitora regular desta coluna, ela se queixou, docemente, de que eu às vezes escrevo sobre “solidão feminina” com alguma incompreensão.
Ao ler o que eu escrevo, ela disse, as pessoas podem ter a impressão de que as mulheres sozinhas estão todas desesperadas – e não é assim. Muitas mulheres estão sozinhas e estão bem. Escolhem ficar assim, mesmo tendo alternativas. Saem com um sujeito lá e outro aqui, mas acham que nenhum deles cabe na vida delas. Nessa circunstância, decidem continuar sozinhas.
Minha prima sabe do que está falando. Ela foi casada muito tempo, tem duas filhas adoráveis, ela mesma é uma mulher muito bonita, batalhadora, independente – e mora sozinha.
Ontem, enquanto a gente tomava uma taça de vinho e comia uma tortilha ruim no centro de São Paulo, ela me lembrou de uma coisa importante sobre as mulheres: o prazer que elas têm de estar com elas mesmas.
“Eu gosto de cuidar do cabelo, passar meus cremes, sentar no sofá com a cachorra nos pés e curtir a minha casa”, disse a prima. “Não preciso de mais ninguém para me sentir feliz nessas horas”.
Faz alguns anos, eu estava perdidamente apaixonado por uma moça e, para meu desespero, ela dizia e fazia coisas semelhantes ao que conta a minha prima. Gostava de deitar na banheira, de acender velas, de ficar ouvindo música ou ler. Sozinha. E eu sentia ciúme daquela felicidade sem mim, achava que era um sintoma de falta de amor.

Hoje, olhando para trás, acho que não tinha falta de amor ali. Eu que era desesperado, inseguro, carente. Tivesse deixado a mulher em paz, com os silêncios e os sais de banho dela, e talvez tudo tivesse andado melhor do que andou.
Ontem, ao conversar com a minha prima, me voltou muito claro uma percepção que sempre me pareceu assombrosamente evidente: a riqueza da vida interior das mulheres comparada à vida interior dos homens, que é muito mais pobre.
A capacidade de estar só e de se distrair consigo mesma revela alguma densidade interior, mostra que as mulheres (mais que os homens) cultivam uma reserva de calma e uma capacidade de diálogo interno que muitos homens simplesmente desconhecem.
A maior parte dos homens parece permanentemente voltada para fora. Despeja seus conflitos interiores no mundo, alterando o que está em volta. Transforma o mundo para se distrair, para não ter de olhar para dentro, onde dói.
Talvez por essa razão a cultura masculina seja gregária, mundana, ruidosa. Realizadora, também, claro. Quantas vuvuzelas é preciso soprar para abafar o silêncio interior? Quantas catedrais para preencher o meu vazio? Quantas guerras e quantas mortes para saciar o ódio incompreensível que me consome?
A cultura feminina não é assim. Ou não era, porque o mundo, desse ponto de vista, está se tornando masculinizado. Todo mundo está fazendo barulho. Todo mundo está sublimando as dores íntimas em fanfarra externa. Homens e mulheres estão voltados para fora, tentando fervorosamente praticar a negligência pela vida interior – com apoio da publicidade.
Se todo mundo ficar em casa com os seus sentimentos, quem vai comprar todas as bugigangas, as beberagens e os serviços que o pessoal está vendendo por aí, 24 horas por dia, sete dias por semana? Tem de ser superficial e feliz. Gastando – senão a economia não anda.
Para encerrar, eu não acho que as diferenças entre homens e mulheres sejam inatas. Nós não nascemos assim. Não acredito que esteja em nossos genes. Somos ensinados a ser o que somos.
Homens saem para o mundo e o transformam, enquanto as mulheres mastigam seus sentimentos, bons e maus, e os passam adiante, na rotina da casa. Tem sido assim por gerações e só agora começa a mudar. O que virá da transformação é difícil dizer.
Mas, enquanto isso não muda, talvez seja importante não subestimar a cultura feminina. Não imaginar, por exemplo, que atrás de toda solidão há desespero. Ou que atrás de todo silêncio há tristeza ou melancolia. Pode haver escolha.
Como diz a minha prima, ficar em casa sem companhia pode ser um bom programa – desde que as pessoas gostem de si mesmas e sejam capazes de suportar os seus próprios pensamentos. Nem sempre é fácil.