quinta-feira, 29 de março de 2012

Millôr Fernandes


"Hai-Kus ou Hokkus
(pequena introdução para os não iniciados)

O Hai-ku aparece em geral nos nossos dicionários com a grafia de Hai-Cai por dois motivos básicos: o primeiro, a guerra que os filólogos patrícios resolveram deflagrar à linda letra K, pelo simples fato dela ter aquele ar agressivamente germânico e só andar com passo de ganso. A batalha é, evidentemente, perdida, pois a letra teima em permanecer na língua, inclusive firmando-se na imagem, hoje quase mítica, de JK, também artificialmente banido da vida política brasileira. O segundo motivo do não uso da grafia Hai-ku é a homofonia da segunda sílaba com outra palavra da língua portuguesa, designando certa parte do corpo de múltipla importância fisiológica. Essa palavra os filólogos só usam a medo. Quando a colocam no dicionário fazem sempre questão de acrescentar (chulo). Assim, entre parênteses.

Resolvi - e não entro em detalhes para não alongar esta explicação - usar a grafia (comprometida) Hai-Kai, para as composições deste livro.

O Hai-Kai é um pequeno poema japonês composto de três versos, dois de cinco sílabas e um - o segundo - de sete. No original não tem rima, que geralmente lhe é acrescida nas traduções ocidentais. A época do aparecimento do Hai-Kai é controversa, e sua popularização deu-se no século XVII, sobretudo através da produção de Jinskikiro Matsuô Bashô, simbolista inspirado profundamente em impressões naturais (sobretudo paisagísticas) e adepto do Zen:

A nuvem atenua
O cansaço das pessoas
Olharem a lua.

Em cima da neve
O corvo esta manhã
Pousou bem de leve.

Contudo há quem afirme que Bashô foi ultrapassado, tanto em popularidade quanto em inspiração, pelo poeta do século posterior (XVIII) Yataro Kobayashi (Issa):

Vem cá passarinho
E vamos brincar nós dois
Que não temos ninho.

Bem hospitaleiro
Na entrada principal
Está o salgueiro.

Apesar de sua forma frágil, quase volátil, dependendo da imagística mais do que qualquer outra poesia, uma implosão, não uma explicitação, o Hai-Kai é, contudo, uma forma fundamentalmente popular e, inúmeras vezes, humorística, no mais metafísico sentido da palavra:

Roubaram a carteira
Do imbecil que olhava
A cerejeira.

Eu vi meu retrato
Bem no fundo do lago
Diz o olhar do pato.

Meu interesse pelo Hai-Kai como forma de expressão direta e econômica começou em 1957, quando eu escrevia uma seção de humor (Pif-Paf) na revista O Cruzeiro.

Passei a compor alguns quase semanalmente, usando, porém, apenas os três versos da forma original, não me preocupando com o número de sílabas. Os Hai-Kais deste saite foram compostos entre 1959 e 1986.
Millôr Fernandes"

Olha,
entre um pingo e outro
a chuva não molha.

Na poça da rua
o vira-lata
lambe a lua.

A caveira é bem rara
pois não pensa nem fala:
só encara.

Meu dinheiro
vem todo
do meu tinteiro.

Não esmaguem a barata
sua nojeira
é inata.

Goze.
Quem sabe essa
é a última dose?

Viço?
Eu já passei
por isso.

Há colcha mais dura
que a lousa
da sepultura?

Com pó e mistério
a mulher ao espelho
retoca o adultério.

A esta hora
e o dia
inda lá fora.

Quantas palavras de amor
morrem
no apontador?

Nada tem nexo.
Tudo é apenas
um reflexo.

Mulatas na pista,
perco a vontade
de ser racista.

Pra ser feliz de verdade
é preciso encarar
a realidade.

Será que o doutor
cobra pela cura
ou cobra a dor?

É minha ideia
que o outono só desfolha
árvore europeia.

Millôr Fernandes (In Hai-Kais - L&PM Editores - Coleção Pocket - 1997)

Homenagem do Scenarium ao genial Millôr.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Gilberto de Nucci



Clique na imagem para melhor ler o texto.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Parabéns, Mulheres!



Família

Três meninos e duas meninas,
sendo uma ainda de colo.
A cozinheira preta, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata de tudo.

A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o trabalho, a reza,
a goiabada na sobremesa de domingo,
o palito nos dentes contentes,
o gramofone rouco toda a noite
e a mulher que trata de tudo.

O agiota, o leiteiro, o turco,
o médico uma vez por mês,
o bilhete todas as semanas
branco! mas a esperança sempre verde.
A mulher que trata de tudo
e a felicidade.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Alguma Poesia'


O Scenarium parabeniza a você, mulher, que é o esteio do mundo! Feliz Dia Internacional da Mulher!

Muito Obrigada!



Prezados amigos do Scenarium, estamos completando 3 anos de existência e eu não poderia deixar de agradecer pela companhia de todos e pelos carinhos deixados nas postagens do blog. Que eu possa ainda continuar por muito tempo a compartilhar com vocês as diversas artes que me encantarem.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Hilda Hilst



Sonetos que não são

I
Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha

Objeto de amor, atenta e bela.
Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha.)

Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel

Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra.

(In Roteiro do Silêncio)


O Poeta Inventa Viagem, Retorno e Morre de Saudade

I
Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.

(In Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)


Que canto há de cantar o que perdura?
A sombra, o sonho, o labirinto, o caos
A vertigem de ser, a asa, o grito.
Que mitos, meu amor, entre os lençóis:
O que tu pensas gozo é tão finito
E o que pensas amor é muito mais.
Como cobrir-te de pássaros e plumas
E ao mesmo tempo te dizer adeus
Porque imperfeito és carne e perecível

E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?
O toque sem tocar, o olhar sem ver
A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.
Como te amar, sem nunca merecer?

(Da Noite - 1992)


Que boca há de roer o tempo? Que rosto
Há de chegar depois do meu? Quantas vezes
O tule do meu sopro há de pousar
Sobre a brancura fremente do teu dorso?

Atravessaremos juntos as grandes espirais
A artéria estendida do silêncio, o vão
O patamar do tempo?

Quantas vezes dirás: vida, vésper, magna-marinha
E quantas vezes direi: és meu. E as distendidas
Tardes, as largas luas, as madrugadas agônicas
Sem poder tocar-te. Quantas vezes, amor

Uma nova vertente há de nascer em ti
E quantas vezes em mim há de morrer.

(In Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)


Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.

(In Do Desejo)


Ode de Ariana Para Dionísio

III
A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavras
Paixão e veemência

E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.

A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta

Por que recusas amor e permanência?

(In Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)


Poesia XXII

Não me procures ali
Onde os vivos visitam
Os chamados mortos.
Procura-me
Dentro das grandes águas
Nas praças
Num fogo coração
Entre cavalos, cães,
Nos arrozais, no arroio
Ou junto aos pássaros
Ou espelhada
Num outro alguém,
Subindo um duro caminho

Pedra, semente, sal
Passos da vida. Procura-me ali.
Viva.


As nove Odes de Ariana para Dionísio foram musicadas por Zeca Baleiro e vocês poderão apreciar a interpretação de algumas dessas odes, pelo compositor, clicando aqui.

terça-feira, 6 de março de 2012

João Guimarães Rosa



Sono das Águas

Há uma hora certa,
no meio de noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d’água,
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir…

Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas de folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes…

Mas nem todos dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono…

(In Magma)

Mudança Necessária

Comunico aos leitores e seguidores do Scenarium que, a partir desta data, o módulo de configuração para a postagem de comentários foi alterado, sendo necessária a ativação das letras para verificação. Não gosto desta medida e espero que seja temporária, mas ela se torna imprescindível, em vista do aumento de spam que este espaço tem recebido.

Agradeço a compreensão de todos.

segunda-feira, 5 de março de 2012

O Homem que Plantava Árvores



O filme, baseado no belíssimo conto (L'Homme qui plantait des Arbres) do francês Jean Giono, de 1953, foi realizado por Frédéric Back, considerado por muitos um gênio da arte e da animação.

Conta a história de Elzeard Bouffier, um pastor de ovelhas que durante anos cultivou uma floresta esplendorosa numa área desértica da França.

O conto é narrado por um jovem viajante (o esplêndido Philippe Noiret, no áudio francês), que um dia encontra este homem nas suas viagens e acompanha a mudança na paisagem, no decorrer dos anos. A beleza calma da paisagem contrasta com a fúria das duas Grandes Guerras que o narrador assiste, e o feito notável do pastor oferece um olhar do poder inspirador da natureza e da esperança, que podem emergir no mais improvável dos lugares.

Palavras do autor: "Para que o caráter de um ser humano revele qualidades realmente excepcionais, é preciso ter a sorte de poder observar as suas ações ao longo de muitos anos. Se tais ações são desprovidas de todo o egoísmo, se o ideal que as dirige é de uma generosidade ímpar, se é absolutamente certo que não procuraram qualquer recompensa e se, além disso, deixaram marcas visíveis no mundo, estamos então, sem sombra de dúvida, perante um caráter inesquecível." - Jean Giono

Para assistir a esta preciosidade, é só clicar na imagem acima.

Fonte: You Tube