domingo, 4 de julho de 2010

Gilka Machado


Gilka Machado – Desenho em lápis de cera de Amaury Menezes (neto da escritora)

“Sonhei em ser útil à humanidade. Não consegui, mas fiz versos. Estou convicta de que a poesia é tão indispensável à existência como a água, o ar, a luz, a crença, o pão e o amor" – Gilka Machado

"A forma ousada dos seus versos, de um ritmo livre e bastante pessoal, harmoniza-se com a liberdade de inspiração, onde predomina um forte sensualismo, tão forte que Humberto de Campos notava-lhe nos poemas verdadeiras 'tempestades de carne'... Seus livros provocavam, simultaneamente, admiração e escândalo, já que a poetisa confessava sentir pelos no vento', desejava penetrar o amado 'pelo olfato, assim como as espiras/invisíveis do aroma...' e declarava, sem rebuços: 'Eu sinto que nasci para o pecado'."
Góes, Fernando [1960]. Gilka da Costa Melo Machado. In: Panorama da poesia brasileira: o pré-modernismo. p.165.


Analogia

“Sempre que o frio chega o meu pesar sorri,
pois te adoro no Inverno e adoro o Inverno em ti...”

Amo o Inverno assim triste, assim sombrio,
lembrando alguém que já não sabe amar;
e sempre, quando o sinto e quando o espio,
julgo-te eterizado, esparso no ar.

Afoita, a alma do Inverno desafio,
para inda te querer e te pensar…
para gozá-lo e gozar-te, que arrepio!…
que semelhança em ambos singular!…

Loucura pertinaz do meu anelo:
— emprestar-te, emprestar-lhe uma emoção,
— pelo mal de perder-te querer tê-lo…

Amor! Inverno! Minha aspiração!
quem me dera resfriar-me no teu gelo!
quem me dera aquecer-te em meu Verão!…

(In Mulher Nua – 1922)

Poema de Amor
(Versos Antigos)

Na plena solidão de um amplo descampado
penso em ti e que tu pensas em mim suponho;
tenho toda a feição de um arbusto isolado,
abstrato o olhar, entregue à delícia de um sonho.

O vento, sob o céu de brumas carregado,
passa, ora langoroso, ora forte, medonho!
e tanto penso em ti, ó meu ausente amado,
que te sinto no vento e a ele, feliz, me exponho!

Com carícias brutas e com carícias mansas,
cuido que tu me vens, julgo-me apenas tua,
— sou árvore a oscilar, meus cabelos são franças.

E não podes saber do meu gozo violento
quando me fico, assim, neste ermo, toda nua,
completamente exposta à volúpia do vento!

No livro “Estados de Alma”, de 1917, Gilka Machado denominou “Poemas de Amor (Versos Antigos)” a uma série de poemas que podem ser divulgados isoladamente. Ao longo do tempo, estes poemas foram recebendo títulos diferentes e podem ser encontrados virtualmente com os seguintes títulos: O Vento, A Volúpia do Vento e Particularidade.

"Se é intensiva a experiência de Gilka Machado, como poetisa e mulher reivindicadora, há outras barreiras a vencer entre a militância poética e a militância doméstica. Havia uma distância, na sua época, entre o campo da sacralidade da arte e certos aspectos da vida rotineira, que o simbolismo intensifica, o modernismo desenvolve e autoras mais contemporâneas, como Adélia Prado, consumam."

Gotlib, Nádia Battella [1982]. Com dona Gilka Machado, Eros pede a palavra: poesia erótica feminina brasileira nos inícios do século XX. Polímica: Revista de Crítica e Criação. p.46-47.


Ser Mulher ...

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor...

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...

Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

(In Cristais Partidos – 1915)

Um comentário:

Eliane F.C.Lima disse...

A propósto de Gilca Machado gostaria de fazer uma citação:

“É possível que Gilca, já viúva, falasse do imaginário do corpo - mas os críticos sempre leram sua obra não como metáfora mas como representação do real. Isso acabou por afastar a autora da sociedade. Até hoje a filha, detentora de seus direitos autorais, cria obstáculo para edições póstumas de sua obra, procurando preservar uma imagem idealizada da mãe, ainda na perspectiva de que vida é igual a obra.” (Trecho tirado de “A Literatura de autoria feminina na América Latina” - texto de Luíza Lobo - http://lfilipe.tripod.com/LLobo.html )
Eliane F.C.Lima