"Hai-Kus ou Hokkus
(pequena introdução para os não iniciados)
O Hai-ku aparece em geral nos nossos dicionários com a grafia de Hai-Cai por dois motivos básicos: o primeiro, a guerra que os filólogos patrícios resolveram deflagrar à linda letra K, pelo simples fato dela ter aquele ar agressivamente germânico e só andar com passo de ganso. A batalha é, evidentemente, perdida, pois a letra teima em permanecer na língua, inclusive firmando-se na imagem, hoje quase mítica, de JK, também artificialmente banido da vida política brasileira. O segundo motivo do não uso da grafia Hai-ku é a homofonia da segunda sílaba com outra palavra da língua portuguesa, designando certa parte do corpo de múltipla importância fisiológica. Essa palavra os filólogos só usam a medo. Quando a colocam no dicionário fazem sempre questão de acrescentar (chulo). Assim, entre parênteses.
Resolvi - e não entro em detalhes para não alongar esta explicação - usar a grafia (comprometida) Hai-Kai, para as composições deste livro.
O Hai-Kai é um pequeno poema japonês composto de três versos, dois de cinco sílabas e um - o segundo - de sete. No original não tem rima, que geralmente lhe é acrescida nas traduções ocidentais. A época do aparecimento do Hai-Kai é controversa, e sua popularização deu-se no século XVII, sobretudo através da produção de Jinskikiro Matsuô Bashô, simbolista inspirado profundamente em impressões naturais (sobretudo paisagísticas) e adepto do Zen:
A nuvem atenua
O cansaço das pessoas
Olharem a lua.
Em cima da neve
O corvo esta manhã
Pousou bem de leve.
Contudo há quem afirme que Bashô foi ultrapassado, tanto em popularidade quanto em inspiração, pelo poeta do século posterior (XVIII) Yataro Kobayashi (Issa):
Vem cá passarinho
E vamos brincar nós dois
Que não temos ninho.
Bem hospitaleiro
Na entrada principal
Está o salgueiro.
Apesar de sua forma frágil, quase volátil, dependendo da imagística mais do que qualquer outra poesia, uma implosão, não uma explicitação, o Hai-Kai é, contudo, uma forma fundamentalmente popular e, inúmeras vezes, humorística, no mais metafísico sentido da palavra:
Roubaram a carteira
Do imbecil que olhava
A cerejeira.
Eu vi meu retrato
Bem no fundo do lago
Diz o olhar do pato.
Meu interesse pelo Hai-Kai como forma de expressão direta e econômica começou em 1957, quando eu escrevia uma seção de humor (Pif-Paf) na revista O Cruzeiro.
Passei a compor alguns quase semanalmente, usando, porém, apenas os três versos da forma original, não me preocupando com o número de sílabas. Os Hai-Kais deste saite foram compostos entre 1959 e 1986.
Millôr Fernandes" Olha,
entre um pingo e outro
a chuva não molha.
Na poça da rua
o vira-lata
lambe a lua.
A caveira é bem rara
pois não pensa nem fala:
só encara.
Meu dinheiro
vem todo
do meu tinteiro.
Não esmaguem a barata
sua nojeira
é inata.
Goze.
Quem sabe essa
é a última dose?
Viço?
Eu já passei
por isso.
Há colcha mais dura
que a lousa
da sepultura?
Com pó e mistério
a mulher ao espelho
retoca o adultério.
A esta hora
e o dia
inda lá fora.
Quantas palavras de amor
morrem
no apontador?
Nada tem nexo.
Tudo é apenas
um reflexo.
Mulatas na pista,
perco a vontade
de ser racista.
Pra ser feliz de verdade
é preciso encarar
a realidade.
Será que o doutor
cobra pela cura
ou cobra a dor?
É minha ideia
que o outono só desfolha
árvore europeia.
Millôr Fernandes (In Hai-Kais - L&PM Editores - Coleção Pocket - 1997)
Homenagem do Scenarium ao genial Millôr.
Um comentário:
Embora eu não concorde com algumas posições do Millôr, ele era a tradução mais perfeita da palavra intelectual. Se é que alguma coisa neste mundo é perfeita. Será no outro? Mas acho que ser poeta foi sua face mais humana e marcante.
Eliane F.C.Lima
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