sexta-feira, 9 de julho de 2010

Danuza Leão



Um quintal

Quando uma pessoa começa a melhorar de vida, pensa logo em comprar uma boa casa. E o que é uma boa casa? É preciso um jardim e uma piscina, imaginam os pais. Eles querem para as crianças uma infância saudável, com confortos que nunca tiveram, mas não pensam no principal: um quintal. Um quintal não precisa ser grande, e o chão deve ser de terra batida. Nele deve haver algumas árvores que não pareçam ter sido plantadas, mas sempre existido. Um abacateiro e uma goiabeira, de goiaba vermelha, são fundamentais. No fundo, um galinheiro tosco, com uma porta quebrada, para que as três ou quatro galinhas possam correr quando alguém quiser pegá-las. Nenhum computador levará uma criança ao deslumbramento que ela terá ao encontrar um ovo e segurá-lo, ainda quentinho. É o mistério da vida nas mãos dela, mais absoluto e mais simples do que qualquer livro de filosofia.

Um dia, a cozinheira avisa que vai matar uma galinha para o molho pardo. Os meninos pedem para ver a cena trágica; a mãe não quer, mas a empregada, acostumada, com o facão na mão, facilita. Se a galinha tiver dentro da barriga aquele monte de ovinhos, aí a lição de morte – e de vida – será ainda mais completa. E mais lições serão aprendidas quando alguém sugerir fazer uma peteca com as penas mais duras e algumas palhas de milho. Mas será que alguém sabe do que estou falando?

Voltando: esse quintal deve ser meio abandonado, mas muito limpo; duas vezes por dia a empregada, cantando bem alto, dá uma varrida. É importante também que haja um tanque para lavar o pé de alguma criança quando ela pisar descalça numa porcaria, e um varal com pregadores de roupa de madeira. Nesse lugar, não vai ter horta nem pomar organizado. Em compensação, é bom que exista do outro lado do muro uma enorme mangueira para que se possa praticar o melhor crime do mundo: roubar as frutas do vizinho. Nos fundos de um quintal, deve haver também uma touceira de bananeiras ou bambus e, claro, um adulto dizendo sempre para tomar cuidado, pois ali pode ter uma cobra. Não há infância que se preze sem medo de cobra. Quando as goiabas começam a crescer, fica todo mundo de olho até a primeira delas estar no ponto para ser arrancada e mordida ali mesmo, sem lavar. E que sensação terrível quando se vê o bicho da goiaba se mexendo. Aí, sem que ninguém precise dizer nada, você começa a aprender que a vida é assim: ou se compra uma goiaba bonita, mas sem gosto, ou se espera com paciência ela amadurecer no pé até desfrutar o supremo prazer de dar aquela dentada – com direito a bicho e tudo.

Mas o tempo voa. De repente você se sente só, abre o caderno de telefones e percebe sua pouca afinidade com os nomes que estão lá, que tem vivido uma vida que não tem nada a ver e começa a procurar um sentido para as coisas. Não encontra resposta, claro, mas um dia está no trânsito, vê um terreno baldio, se lembra daquele quintal no qual não pensa há anos e percebe que essa é a lembrança mais importante e mais feliz de sua vida. E passa a olhar o mundo com a superioridade de quem tem um tesouro guardado dentro do peito, mas ninguém sabe.

Este texto, publicado na Revista Claudia, é de grande beleza e somente quem vivenciou aquela época pode afirmar como era gostoso ter um quintal onde brincar, onde exercitar a imaginação e a fantasia, enfim, onde aprender, crescer, amadurecer, assim como as frutas que se colhia naqueles pequenos recantos. Por ter sido criada em uma casa com quintal, há dois anos fiz este singelo soneto e aproveito para reeditá-lo aqui. Ele também pode ser lido no site Cenário de Sentimentos.

No Tempo dos Quintais

A saudade me leva pro passado
E, no fechar dos olhos... tal e qual,
Vejo a minha casinha e seu quintal
Como se fora um sonho bem sonhado.

O galinheiro sendo derrubado...
No lugar, um telhado com beiral...
Não mais teria o canto matinal
Do galo a uma panela condenado.

Outros bichos moraram lá depois:
Uma bela jandaia e cães, só dois...
A jandaia fugiu, cães não há mais...

Sem gritos e latidos de animais,
O som que vem e ecoa de emoção
É o pranto do saudoso coração...

15/02/08
Marise Ribeiro (RJ) - Brasil

2 comentários:

Eliane F.C.Lima disse...

Marise,
Adorei o texto da Danusa, eu que sempre tive um pouco de má vontade com a dondoquice dela. É aquilo mesmo. Lembro de que, quando chegávamos à casa de meu avô, em Sepetiba, Rio de Janeiro, cada criança escolhia seu caju e ficava esperando amadurecer. Enquanto isso, boca roxa de tanto comer jamelão. E, à tarde, soneca na esteira, daquelas bem vagabundas, debaixo das enormes árvores frutíferas. E nossas roupas sempre voltavam imprestáveis de tão manchadas de caju. Pitanga, colhi do pé, na beira da rua, indo para a praia, que naquela época, ainda era limpinha. E os cocos? Os adultos, plano feito às escondidas das crianças para não dar mal exemplo, eram roubados do vizinho.
Coisa boa, lembrança não tem preço! Hoje as crianças precisam fazer terapia para se livrar do vício do computador. A infância de muitas delas foi assassinada.
Eline F.C.Lima

Anônimo disse...

Ai, Marise, os quintais da minha vida! Eu era romancista, mas foi por saudade desses pequenos territórios de tantas aventuras que me tornei autora de infanto-juvenis. Para minha neta, posso ofertar os livros, mas infelizmente não um quintal. Abraços, e obrigada pela divulgação do meu novo livro.
Ana Suzuki