Precisamos falar sobre o Chico
Relevância não é um conceito matemático.
Um amigo me convidou para o show do Lobão sábado passado, no Circo. Declinei: a duas semanas do fim da temporada de 40 dias, eu enfim conseguira meu ingresso para ver o Chico.
— O Chico? — espantou-se meu amigo. — Temporada? Mais de um mês? Quinta a domingo?
— Qual o problema?
— Achava que esses dinossauros da MPB só faziam um fim de semana e olhe lá. E o cara não emplaca um sucesso há 30 anos!
— Ninguém, mais, na MPB, emplaca sucesso algum. Se não é pagode, funk, axé, padre, pastor ou Roberto Carlos, danou-se.
— Não exagera.
— O que é, hoje, emplacar um sucesso? Discos não vendem. Rádios não contam. O que importa é show.
— Mas um mês? Como é que o Chico faz temporada de um mês?
— Chico é um mito. Um Patrick Bruel. Um Bob Dylan latino. Um Gainsbourg. O público que ele teve, continua a ter: a geração dele e pelo menos as três seguintes e uma turma nova, menos numerosa. Além disso, faz um show a cada cinco anos. Não é como o Caetano, sempre nos palcos.
— O Caetano é um ser ubíquo.
— Exato. O Caetano está em novelas, jornais, filmes e prêmios pop. Chico, não. Desaparece por meia década, vai para a França, escreve um livro, caminha na praia, arruma namorada. Quando anuncia um show, é o estouro da boiada.
Meu amigo reconheceu sua avaliação equivocada e me parabenizou por ter um ingresso tão valioso, stricto e lato sensu.
Teve um insight: quantos shows novos de Chico Buarque ainda teremos oportunidade de ver?
— Um novo show de Chico é como uma nova Copa do Mundo.
— Só que, ao contrário do futebol, a qualidade só aumenta — retruquei.
Meu amigo discordou, fazendo coro àquela cansativa esparrela.
— Chico já não é o mesmo. Não faz mais os refrãos que a turma toda gosta de cantar. Chico não tem mais a relevância que tinha.
— Relevância para quem, cara pálida? Musicalmente, ele se sofisticou. Nem precisa mais de parceiro. Para quem gosta de música, é joia.
— Ele era mais relevante num tempo em que a política ditava sua pauta musical. Olha: “Construção”, “Meu caro amigo”, “Vai passar”, “Apesar de você”, “Geni e o zepelim”, “Trocando em miúdos”, “Feijoada completa”. E depois? O que veio?
— Que tal “Futuros amantes”, “Choro bandido”, “A ostra e o vento”, “Brejo da cruz”, “Estação derradeira”, “Valsa brasileira”, “A moça do sonho”?, “Você, você”?, “Cecília”?
— Quem canta essas músicas? A galera não canta essas músicas. Ninguém sabe cantar.
— Que galera? E que critério é esse, que identifica qualidade a tamanho do público?
— A galera que cantava Chico.
— Eu, por exemplo, e pelo menos uns cinco amigos, achamos “As cidades” um discaço. Sei todas as músicas de cor.
— Faz parte de uma minoria. Digamos, 14%.
— E esses 14% não são relevantes? Estão equivocados? Devem ser exterminados?
— Deixa de histeria. Virou manifesto?
— Se atribuir-se uma superioridade “verdadeira”, de caráter absoluto, à cultura culta, sobre as manifestações de maior apelo popular resvala no fascismo, o oposto também.
— Que oposto?
— Dizer que só o gosto das massas é nobre e que a sofisticação é formalismo de elite equivale a perseguir o refinamento, tornar o intelectual um pária, um degenerado, um hermético, inimigo do entendimento. A ideia de que a força está com a maioria fez sucesso tanto nos colossos de esquerda quanto nos populismos totalitários de extrema direita.
— Ih, pirou.
A essa altura, o leitor deve estar perguntando como foi o show do Chico.
Respondo: foi dos melhores que vi. Intimista, privilegiou a música mesmo quando o “sucesso que a gente gosta de cantar” pintou.
Tocou o disco novo inteiro. O disco novo é lindo. “Essa pequena” é uma obra-prima. O refrão de “Sou eu” pega. “Querido diário” é pungente.
Fez um “Geni” apoteótico. Os duetos de violão com Luiz Cláudio Ramos estão primorosos.
Chico Batera é um barato. Jorge Helder é o fino. Wilson das Neves é uma lenda.
E tudo é relevante.
Arnaldo Bloch
— Exato. O Caetano está em novelas, jornais, filmes e prêmios pop. Chico, não. Desaparece por meia década, vai para a França, escreve um livro, caminha na praia, arruma namorada. Quando anuncia um show, é o estouro da boiada.
Meu amigo reconheceu sua avaliação equivocada e me parabenizou por ter um ingresso tão valioso, stricto e lato sensu.
Teve um insight: quantos shows novos de Chico Buarque ainda teremos oportunidade de ver?
— Um novo show de Chico é como uma nova Copa do Mundo.
— Só que, ao contrário do futebol, a qualidade só aumenta — retruquei.
Meu amigo discordou, fazendo coro àquela cansativa esparrela.
— Chico já não é o mesmo. Não faz mais os refrãos que a turma toda gosta de cantar. Chico não tem mais a relevância que tinha.
— Relevância para quem, cara pálida? Musicalmente, ele se sofisticou. Nem precisa mais de parceiro. Para quem gosta de música, é joia.
— Ele era mais relevante num tempo em que a política ditava sua pauta musical. Olha: “Construção”, “Meu caro amigo”, “Vai passar”, “Apesar de você”, “Geni e o zepelim”, “Trocando em miúdos”, “Feijoada completa”. E depois? O que veio?
— Que tal “Futuros amantes”, “Choro bandido”, “A ostra e o vento”, “Brejo da cruz”, “Estação derradeira”, “Valsa brasileira”, “A moça do sonho”?, “Você, você”?, “Cecília”?
— Quem canta essas músicas? A galera não canta essas músicas. Ninguém sabe cantar.
— Que galera? E que critério é esse, que identifica qualidade a tamanho do público?
— A galera que cantava Chico.
— Eu, por exemplo, e pelo menos uns cinco amigos, achamos “As cidades” um discaço. Sei todas as músicas de cor.
— Faz parte de uma minoria. Digamos, 14%.
— E esses 14% não são relevantes? Estão equivocados? Devem ser exterminados?
— Deixa de histeria. Virou manifesto?
— Se atribuir-se uma superioridade “verdadeira”, de caráter absoluto, à cultura culta, sobre as manifestações de maior apelo popular resvala no fascismo, o oposto também.
— Que oposto?
— Dizer que só o gosto das massas é nobre e que a sofisticação é formalismo de elite equivale a perseguir o refinamento, tornar o intelectual um pária, um degenerado, um hermético, inimigo do entendimento. A ideia de que a força está com a maioria fez sucesso tanto nos colossos de esquerda quanto nos populismos totalitários de extrema direita.
— Ih, pirou.
A essa altura, o leitor deve estar perguntando como foi o show do Chico.
Respondo: foi dos melhores que vi. Intimista, privilegiou a música mesmo quando o “sucesso que a gente gosta de cantar” pintou.
Tocou o disco novo inteiro. O disco novo é lindo. “Essa pequena” é uma obra-prima. O refrão de “Sou eu” pega. “Querido diário” é pungente.
Fez um “Geni” apoteótico. Os duetos de violão com Luiz Cláudio Ramos estão primorosos.
Chico Batera é um barato. Jorge Helder é o fino. Wilson das Neves é uma lenda.
E tudo é relevante.
Arnaldo Bloch
Nota: Fotografia pessoal, tirada durante o show do dia 15 de Janeiro, no qual esta admiradora do artista foi brindada com um show inesquecível.